KM2, de Ebony: o extraordinário álbum de uma rapper Extraordinária
- Malu Nobre
- 10 de jul.
- 7 min de leitura

A rapper Ebony lançou, em junho desse ano, seu terceiro álbum, “KM2”. “Conhecida como a causa do problema”, Ebony mantém a ousadia que marcou seus trabalhos anteriores — mas não da forma como muitos insistem em rotulá-la, seja como hiper sexualizada, polêmica ou convencida. Em “KM2”, ela apresenta um álbum intimista, profundamente pessoal e repleto de questões políticas. Ainda que não abandone o universo de “sexo e drogas”, Ebony nos conduz também à realidade de sua cidade natal, Queimados, na região metropolitana do Rio de Janeiro, e expõe traumas dolorosos da infância, marcados por abusos ligados à religião e a (muitos) episódios de estupro. Nessa série de dois textos, convido você a percorrer o álbum através do meu olhar — um olhar que se reconhece em muitas das músicas, mais do que eu gostaria de me reconhecer.
A primeira faixa, que leva o nome do próprio álbum, me soou como uma verdadeira viagem pela Baixada Fluminense, quase como se eu pudesse ouvir os sons de quem vive por lá. Logo após o barulho que lembra o metrô ou o ônibus da região — um anúncio avisa “próxima estação” — entra a voz de uma jornalista que afirma: “A Baixada Fluminense é o local mais violento do estado do Rio de Janeiro. Um estudo mostra que, nos últimos quatro anos, mais de 5.000 pessoas foram assassinadas na região.” Ao fundo, ecoam sons de tiroteio. É como se, mais do que ser levada ao cenário físico, você fosse transportada para dentro da dura realidade de quem convive diariamente com a violência policial naquele território.
Logo em seguida, é possível escutar o que provavelmente é um vendedor ambulante. Ele oferece “gengibre com mel para a garganta, café, amendoim com casca, jujuba de iogurte, jujuba de fruta, tri bala, Lua cheia, bala Juquinha...” e a sensação é de um certo aconchego que talvez eu não saiba bem como definir. Como se, naquele meio cercado por violência(s), houvessem, também, as pessoas que ali (con/sobre)vivem. Apesar da violência, é vívido. Tem gente, tem criança, tem vendedor, tem vida. E, assim que essa voz cessa, novamente, ouço a uma jornalista. Dessa vez, ela conta um caso específico em que “três jovens” são “executados na baixada fluminense”. É como se essa troca de ambientação mostrasse a dicotomia de um lugar e, ao mesmo tempo, as tentativas de sobrevivência dos moradores dali.
De repente, sinto o clima pesar. Uma mulher diz, aos prantos: “Eu tava trabalhando/Quando eu cheguei eu vi a desgraceira toda/Não sei como foi/Só sei que os meninos “tavam” todos estragados na cabeça/Estragaram os bichinhos”. Eu lavava louça quando ouvi esse álbum completo. Logo nessa primeira faixa, mais especificamente nesse momento, meus olhos encheram d’água. Não sei ainda se de ódio aos regimes aos quais somos submetidas diariamente e às opressões que nascemos obrigadas a lidar; ou se de tristeza, por me compadecer com a voz trêmula dessa mulher que, num dia que deveria ser comum, ao retornar do trabalho, enxerga três jovens com suas cabeças “estragadas”. Me pego questionando: quem cuida da saúde mental desses que sobrevivem? E, por quanto tempo ainda sobreviverão? Quem serão os próximos? Como deve ser (sobre)viver num meio assim? Será que essas pessoas questionam se não serão elas mesmas as próximas? Não seriam essas mortes ações propositais de um Estado que prefere investir em uma polícia assassina e bruta, em vez de investir em educação, cultura e saúde?
Dali, já percebo que esse álbum ultrapassaria completamente minhas expectativas.
A primeira faixa não acaba aqui. O que penso ser a continuação da reportagem desse mesmo caso dos três jovens executados, continua: “Essa fita aqui, usada pela perícia, né, da Polícia Civil/Eles estavam exatamente nesse local/Cinco homens dentro de um carro passaram por aqui atirando/O alvo, eram as cabeças das vítimas.” Aqui, uma possível resposta a tantas questões. Se o alvo eram as cabeças das vítimas, se a Polícia Civil fez a perícia e isso foi constatado, que articulação é feita entre a PM e o Estado para acertar a cabeça de três jovens propositalmente? E daí percebo que, a cada questão, me desdobro em mais duas, e que desse fio minha mente se indigna de mais outras diversas maneiras. Como se o mundo em que eu vivesse não pudesse ter paz, assim como o meu. Como se o mundo que eu vejo e que eu percebo a cada dia, fosse um caos completo, assim como minha própria mente. Se a cada questão, eu desdobro mais duas, e se, dessas duas, outras quatro virão; e se sigo sem respostas; e se tantas pessoas seguem sem respostas; quem detém essas soluções? Quem, em seu mais puro egoísmo, detém para si essas soluções e, pior ainda, guarda para si as ações que as solucionariam? Talvez seja um grande delírio pensar tanto em tão pouco tempo de uma primeira faixa de um álbum. Mas, talvez, muito esteja sendo dito em pouquíssimos segundos, mas você não esteja prestando a atenção devida.
Na segunda faixa, “Parte do Mundo”, Ebony faz referência a “fazer parte do mundo”, expressão comumente usada por religiosos conservadores de maneira conotativa negativamente. Ela subverte essa expressão para encarar críticas desse tipo não apenas como algo positivo, mas como uma forma de superação e empoderamento do que ela é, de fato, e do que representa dentro de um universo feminino negro: uma mulher que, apesar de sua dura realidade (apresentada na primeira faixa), conseguiu subverter-se e ser “única” e “sem igual”. Ebony utiliza de uma crítica que poderia ser encarada como algo pejorativo para demonstrar que “fazer parte do mundo” é o que faz dela alguém que é “direta”, “faz sem culpa”, que está “a cada dia mais linda” e que “tentam imitar, mas não conseguem ir a fundo”. Ela é representatividade e referência. Potência e resistência de uma realidade que a colocaria em um outro lugar, que não o que ocupa hoje.
“Gin com Suco de Laranja”, “Festas e Manequins”, “Vale do Silício” e “Hong He”, as faixas seguintes, trazem um mix de sensualidade, sexo, bebidas, drogas e relações, mas expõem, também, uma Ebony com suas questões de saúde mental: “É complexo, baby, deixa eu culpar minha borderline” “E DDA, talvez, mas na hora H, hiperativa”. Obviamente, são coisas que não se anulam, mas que normalmente são colocadas de lado e desumanizam artistas que raramente se expõe corajosamente, como ela faz. Apesar de muito mais debatidas atualmente, essas questões raramente são percebidas, principalmente quando se trata do universo feminino: tentam justificar nossas angústias e descontentamentos como simples hormônios da TPM ou histeria.
Além disso, Ebony se permite demonstrar um pouco vulnerável, citando questões relacionadas a corpo: “Eu nunca fui essas meninas tipo manequim/Por isso é estranho elas querendo ser iguais a mim”, expondo as mudanças das tendências da moda que impõem e decidem o que deve ser considerado um “corpo ideal”. Atualmente, há uma nova virada na busca por corpos extremamente magros, como no início dos anos 2000, mas ainda marcada por forte sexualização, inclusive de corpos que, até então, haviam sido sempre marginalizados, como os corpos de mulheres negras. E é estranho mesmo, ao menos para mim, crescer como “gorda” e “feia, do cabelo duro” e se tornar, ao menos em alguns poucos universos, algum tipo de modelo a ser buscado. Sempre cito que zoavam boca na escola e, agora, mulheres brancas pagam por procedimentos estéticos caros numa busca pela boca que tenho. É estranho mesmo enxergar o mundo subvertendo uma lógica, mas, em vez de fazer isso como forma de empoderamento dos corpos negros femininos, trazer como uma trend vazia e artificial do que é, agora, considerado bonito ou aceitável socialmente. Me pergunto, muitas vezes, quando mulheres poderão expressar-se livremente com rostos e corpos que têm, valorizando suas singularidades, sem, necessariamente, seguir uma referência, a ponto de tornar isso uma regra para que sejamos aceitas. Realmente é confuso, ainda mais quando a subversão não vem em forma de superação, mas de reconfiguração do que é uma “mulher ideal”. Ainda assim, aponto aqui que bocas grandes são vistas como belas apenas quando mulheres brancas as colocam, mas, raramente reconhecidas como pontos de destaque e admiração em nossos corpos negros. E é mesmo assim: nós podemos até virar uma referência a elas, mas nunca a seremos, e elas também jamais entenderão o que é lutar todos os dias para aceitar o corpo que enxergamos ao olharmos no espelho, e sermos constantemente subcategorizadas, não apenas por uma boca ou um cabelo, mas como um todo.
Ebony também expõe quem é a Milena, que lida com cortes de relações pessoais em sua vida e fechamentos de ciclos: “E o que são falsos amigos se ninguém é bom ou mal? É só o karma, eu sou o karma.” Somos o karma quando optamos por nos colocar a frente das nossas escolhas e desviar nossos caminhos de quem não nos acrescenta ou, pior, nos leva para baixo. Somos o karma quando escolhemos estar com quem não apenas nos aceita, mas compreende ou até mesmo compartilha de nossas dores também, sem nos descredibilizar ou sem nos colocar como loucas. (Sobre)viver como mulheres negras em um mundo feito e arquitetado estrategicamente para o conforto de homens brancos, apenas, não é só desafiador, mas, exaustivo. E isso nos coloca de frente a escolhas que ou nos fazem ser esse karma, ou nos fazem performar alguém que não somos. E, assim como Ebony parece escolher, eu escolho ser quem sou e andar com quem faz sentido para essa Malu que, finalmente, tem se tornado cada vez mais si mesma.
Em “E o que é correr perigo na mão de falsos amigos se pra cada rima minha é um trauma?”, me identifico na minha busca constante, desde que me entendo por gente, por expressar, na solidão de um papel e uma caneta, em prosa ou em rimas, o que é sentir que “ninguém liga pros seus traumas”. Do aperto no peito que carrego desde a infância às superações que hoje a escrita me possibilita alcançar, perceber que, ao longo dessa trajetória, encontro pessoas que verdadeiramente se importam com meus traumas é algo libertador. Conhecer e conviver com quem compartilha das mesmas lutas, internas ou externas, é potência e combustível para seguir viva, contrariando não apenas as estatísticas, mas também as normas que esperam nos encaixar em padrões, num mundo que o tempo todo impõe o que deve ser aceito em todos os âmbitos.
E é claro que Ebony não deixaria, em um álbum tão completo e complexo, de empoderar a sexualidade feminina, injustamente muito banida e proibida: “chega a noite e também sou DJ, mas minha música não é pra você”, fazendo referência à masturbação feminina. Em um mundo em que o prazer das mulheres, quando notado, é colocado em segundo plano, a mistura da metáfora com o duplo sentido e um certo eufemismo para citar o ato de masturbação feminina, demonstra a importância de um ato íntimo que não é para os outros, mas para si mesma, e que é importante em uma busca não apenas por prazer, mas também por conhecimento de seu próprio corpo.
continua
MALU NOBRE

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