KM2, de Ebony: o extraordinário álbum de uma rapper Extraordinária part 2
- Malu Nobre
- 17 de jul.
- 3 min de leitura

As faixas que vêm a seguir são as minhas preferidas: “Extraordinária” e “Não Lembro da Minha Infância”). Uma, entretanto, raramente tenho coragem de ouvir por completo. Não é coincidência – lembrar da minha infância é traumático e pesado. Apesar das “fotos” que “capturam os bons momentos”, “internalizei meus medos” e os “deixei de lado” por muitos anos. Tem sido um grande desafio desenterrar certos traumas e, finalmente, lidar com eles de maneira responsável e cuidadosa. Ebony lança esse álbum e me empurra a ter coragem de falar sobre um dos meus traumas mais profundos e que mais internalizei. Foi numa quarta-feira fria que decidi ler o trecho da música ao meu psicólogo e falar sobre alguns episódios que lutei muito para que simplesmente sumissem da minha memória, mas que, mesmo deixados de lado, influenciam a mulher adulta que sou hoje. Apesar de todas as violências que marcaram a minha infância, apesar de herdar alcoolismo (“papai me deixou de herança uma fazenda de café e alcoolismo”), assim como Ebony, “não tenho medo de monstros” porque “aprendi feitiços que não existem em grimórios”. Apesar de ter pensado durante uma infância inteira que “talvez nada tenha importância”, questionar se estava “alucinando” ou se era “uma lembrança” e refletir constantemente “o que Jesus faria nessa circunstância”, consigo hoje ser “mais que o bastante”, dar “mais que o bastante” e não me permitir – pelo menos não mais – tentar caber onde jamais me caberia, simplesmente porque “me sinto extraordinária, dona de uma mente brilhante” e “até minha arcada dentária é de alguém relevante”. “O estresse dos meus traumas me deu tique-tique” e eu me cansei de tanto escrever e entregar cartas ignoradas, mas, mesmo assim, “eu nunca fui de apontar o dedo”, pois tenho consciência de que “a insegurança que” elas sentem “sempre que eu chego é que eu não preciso de nada pra me sentir grande”. Me sentir extraordinária, reconhecer em mim que meu diastema é bonito sim (“ele ama quando cuspo pelo diastema”) e que ser “conhecida como a causa do problema” é porque eu não permito estar em situações de injustiça, são formas de reconhecer que sou muito mais que meus traumas, e vou muito além do que uma infância injusta: sou uma mulher que se respeita, acima de tudo, e que vê seu amor próprio como uma das formas de resistência a um mundo que tenta nos fazer sentir erradas o tempo todo.
Em “Triplex”, “KIA” e “Roubando Livros”, Ebony finaliza um álbum potente e íntimo sem deixar de se impor como alguém que dá o seu melhor, mesmo já tendo dormido na rua, ficado sem grana e sem comida. Ela se afirma como quem se acha sim, porque tudo que sabe foi ela mesma quem a ensinou, expondo a luta solitária que é ser uma mulher negra. Solidão essa que parece ser uma opção de algumas mulheres que preferem a rivalidade à união feminina. Assim como Ebony, “vejo tua vitória como fosse uma vitória minha” e “sinto muito se você me quer como sua inimiga”, mas realmente penso que poderíamos fazer pactos entre nós, como os feitos entre homens. Com frequência, eles passam pano para atos injustos e sujos de seus amigos, permanecem unidos, se defendem mutuamente e não se abalam nem mesmo diante de casos extremos. Penso que, talvez, se nós, mulheres — sobretudo nós, mulheres negras —, adotássemos esse mesmo comportamento e deixássemos de nos confundir, não apenas a cena do Hip-hop uberlandense, mas muitos outros ambientes e contextos seriam mais saudáveis, e conseguiríamos erguer nossas próprias barreiras para nos proteger das inúmeras injustiças que nos atingem. Colocaríamos as nossas em primeiro lugar e afirmaríamos umas às outras e a eles que “não somos mães de homens velhos”, “não trocaríamos mais beijo com esses marmanjos” e internalizaríamos: “se não me cabe, sem milagre, eu levanto e ando”. Talvez se nos enxergássemos como a potência que de fato somos, e colocássemos esses homens em seus lugares, e deixássemos de lado possíveis conflitos entre nós, nossa luta não seria apenas mais forte, mas seria muito mais significativa e acolhedora. O que restaria a eles? Ebony finaliza seu disco com uma possível resposta: “Homens chateados porque eles não fazem meu tipo” e “Consigo ver os bofe tudo em choque, olhando pros amigo/Com cara de: Deus, vai ser difícil por defeito nisso”.
Sim, Ebony, é muito difícil – talvez impossível – por defeito nesse grande, potente e extraordinário álbum.
MALU NOBRE

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